quinta-feira, 25 de agosto de 2011

De palavras e profecias


Nei Alberto Pies

“As pessoas escrevem a partir de uma necessidade de comunicação e de comunhão com os outros, para denunciar aquilo que machucava e compartilhar o que traz alegria. As pessoas escrevem contra sua própria solidão e a solidão dos demais porque supõem que a literatura transmite conhecimentos, age sobre a linguagem e a conduta de quem a recebe, e nos ajuda a nos conhecermos melhor, para nos salvarmos juntos. Em realidade, a gente escreve para as pessoas com cuja sorte ou má sorte se sente identificado: os que comem mal, os que dormem pouco, os rebeldes e humilhados desta terra; que em geral nem sabem ler” (Eduardo Galeano, In: Vozes e crônicas. São Paulo: Global/Versus, 1978)

A 14ª Jornada Nacional de Literatura, que acontece em Passo Fundo, RS, é um evento grandioso, de relevância cultural e literária, que corrobora com a convicção de que palavras só adquirem sentido quando colocadas em movimento. A Jornada Nacional de Literatura e a Jornadinha fazem parte de um enorme esforço de um grupo de pessoas que, por suas crenças e ideários, re-afirmam o papel da literatura em nosso momento histórico.

Na condição de participante/expectador deste grande evento literário gostaria de referir a necessidade que temos de justificar a importância e o uso das palavras. Vivemos num momento histórico em que tudo parece ser passível de coisificação e preço, inclusive as obras da criação humana. Perdemos a noção do conceito de valor, atributo que só poderia ser conferido a quem cria e transforma mundo e humanidade: o próprio ser humano. E a literatura, por ser obra da criação humana, não tem preço, mas tem valor. Por isso mesmo ela deveria ser um produto cultural disponível e acessível a todos, independente da condição social, econômica ou cultural. Deveria ser amplamente divulgada e apreciada como parte da nossa constituição de sujeitos sociais, de nossa cidadania e de nossa democracia.

Eduardo Galeano, em seu texto Em defesa da palavra, profetiza que a escrita não possui razões para justificar-se solitariamente. A escrita, na sua visão, “só pode ser útil quando coincide de alguma maneira com a necessidade coletiva de conquista de identidade”. Dito de outra forma, o escritor afirma seu desejo de ajudar muitas pessoas a tomarem consciência do que são. Ele está falando da função social que a literatura exerce sobre a vida de uma comunidade, a vida de uma nação. “Que bela tarefa a de anunciar o mundo dos justos e dos livres! Que função mais digna, essa de dizer não ao sistema da fome e das cadeias – visíveis ou invisíveis!”

As palavras morrem se não as colocarmos em movimento. E não serão os mais modernos meios de comunicação e entretenimento que tornarão mais disponíveis as obras literárias, criando a tão almejada cultura da leitura. As palavras escritas, contadas e recontadas, sobreviverão se formos capazes de viver o espírito literário da criação, da imaginação e da projeção de um mundo mais humanizado, mais solidário, mais cheio de alegria e mais vazio de tristeza e decepção. A literatura anuncia um mundo novo, criando ferramentas e habilidades capazes de nos fazer mudar a realidade que, de tão nua e crua, parece nem sempre permitir a busca de soluções.

Por mais individualizados e egocêntricos que possamos ser, desejamos participar dos movimentos desencadeados pela arte e pela criação humanas. Seja nas relações interpessoais, nos eventos culturais, nos grupos sociais dos quais fazemos parte, estamos sempre arrumando formas e jeitos de nos comunicar, de fazer as palavras circularem sentidos e impressões de nossa vida individual ou coletiva. Mesmo quando esta busca é individual, o processo envolve os outros, como no relato que segue: “Triste, tuitou "Sinto-me só!”. Setenta milhões retuitaram e novecentos mil responderam "Eu também!"(Cem toques cravados, Edson Rossatto)

Dá para pensar um mundo sem a literatura? Dá para ser feliz sem brincar com as palavras? Se não dá, deixemo-nos contagiar pelos movimentos que emergem da vida e das nossas palavras.

Nei Alberto Pies, professor e ativista de direitos humanos

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

BIOÉTICA

Profª. Andressa S. Silva1

“A ética que não serve para tornar a vida mais humana é como a medicina que não serve para curar.” (Bakshtanovski)

“A bioética designa um conjunto de questões éticas, que coloca em jogo os valores, originado pelo poder cada vez maior da intervenção tecnocientífica no ser vivo (especialmente, mas não exclusivamente, no homem). Bioética designa, também, um certo espírito de aproximação entre ética e os problemas tecnocientíficos. Este espírito manifesta-se em geral na multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e posições pluralistas. A pluralidade da abordagem, que abrange não só as ciências naturais como também as ciências humanas, é uma exigência da complexidade objetiva das questões que se levantam.” (Hottois, 1990, p. 136)

Introdução 

A bioética é um capítulo da ética (Pegoraro, 2006). Uma tentativa de definir a disciplina seria reducionista, então será utilizada a definição simplista que parte da etimologia: bios-ethos, ou, ética da vida.

A genealogia da disciplina é marcada pelo livro entitulado “Bioética: uma ponte para o futuro” de Van Rensselaer Potter, publicado em 1971. Segundo Diniz e Guilhem, 2007, a bioética de Potter deveria ser uma disciplina capaz de acompanhar o avanço científico, com um olhar ético, isento de interesses morais. 

O avanço cada vez mais rápido do conhecimento tecnológico ocasionou o surgimento de dilemas morais inesperados, em especial relacionados à prática médica. A bioética traria uma resposta da ética a estes dilemas. Entretanto, não é isso o que vem ocorrendo, considerando que a moral é relativa e dinâmica.

Numa perspectiva histórica, na década de 1970, o governo dos Estados Unidos reuniu um grupo de estudiosos para averiguar abusos cometidos na área médica, e o resultado deste estudo ficou conhecido como Relatório Belmond, de 1978, em que foram eleitos três princípios éticos (respeito às pessoas, ou autonomia, justiça e beneficência).

Por ser um ramo da ética que questiona problemas da biotecnologia, então se caracteriza por uma disciplina instável e interdisciplinar (Pegoraro, 2002; Hottois, 1995).
Pegoraro (2002) afirma que, historicamente, a bioética é uma corrente de pensamento preocupada essencialmente com três temas:

• As descobertas tecnocientíficas, caracterizada pela ambivalência da ciência e da técnica. A principal questão deste tema: tudo o que pode ser feito pela ciência deve ser feito?

• Eco-ética, caracterizada pela preocupação com o ambiente em que nascem, vivem e morrem as formas vivas;

• A relação da tecnociência com as três formas de vida, caracterizada pelos questionamentos relacionados à manipulação genética de plantas e animais, inclusive o homem. 

1 Enfermeira e Filósofa. Especialista em Bioética e Enfermagem em UTI. Leciona Filosofia para o Ensino Médio no Estado de São Paulo e Bioética e Pediatria em escolas técnicas de enfermagem. Interessa-se por ficção, bioética, ética, política e pediatria. Contatos: prof.enf.andressa@gmail.com 

Além da corrente principialista, a mais conhecida, existem também as correntes de bioética secular, confessional e fenomenológica (Pegoraro, 2002).

1. Bioética e a área da saúde
 
Para Barchifontaine e Pessini (1989) a bioética nasceu por volta de 1970 nos EUA, focalizado especialmente nos problemas da experimentação sobre o homem, sua metodologia e seu controle social. Em 1971, Van Renselaer Potter, oncologista, elaborou o termo bioética em um livro de sua autoria, mas foram biólogos que iniciaram a reflexão no terreno da bioética, como Willard Gayling e Daniel Gallaham.

A bioética pode ser encarada como um aprimoramento da deontologia tradicional (Fontinele Junior, 2007). É um ramo moderno da moral que pretende organizar os direitos do paciente face ao aumento do poder médico. É simplesmente um capítulo da ética, que cresceu no contexto do progresso tecnológico deste século, com notável concentração na área médica. Não é uma reflexão exclusiva da área médica.

A corrente bioética mais conhecida é a principialista. Os princípios da bioética foram construídos na década de 1970, quando a “Comissão norte-americana para a proteção da pessoa humana na pesquisa biomédica e comportamental” redigiu e apresentou o “Relatório Belmont” (Fontinele Junior, 2007). Este relatório estabeleceu três princípios fundamentais para as reflexões bioéticas: beneficência, que afirma que a equipe de saúde deve visar, acima de tudo, o bem do paciente. Autonomia, de origem no pensamento kantiano, onde o indivíduo é um sujeito de direitos que garantem sua autonomia. E justiça, buscando-se equidade nos tratamentos.

2. Bioética e meio-ambiente
 
Se pensarmos em vida (bio), não somos os únicos a habitar o planeta. Existe uma infinidade de fauna, flora, compostos orgânicos, que fazem parte de uma simbiose, que permite que todos possam realizar com sucesso seu ciclo vital, de modo que se sustente a vida (Rocha, 2011).

O meio ambiente está sofrendo uma exploração excessiva que ameaça a estabilidade dos seus sistemas de sustentação. O homem é o único animal que modifica a natureza com seu trabalho, nem sempre de forma favorável e muitas vezes de forma irreversível. A sociedade moderna intensifica de tal forma esse processo que compromete a vida no planeta com o objetivo de aumentar o lucro. Por outro lado, o resultado dessa exploração excessiva, o lucro, não é repartido equitativamente, e apenas uma minoria da população planetária se beneficia desta riqueza (Marcos, 2011).

Ética ambiental pode ser definida como a conduta comportamental do ser humano em relação à natureza; decorre da conscientização ambiental e tem por objetivo a conservação da vida global (Santos e Pimenta, 2007).

Os 17 (dezessete) princípios norteadores da ética ambiental são: princípio da legalidade, da supremacia do interesse público, da indisponibilidade do interesse público (o meio-ambiente não pertence a ninguém, mas é de todos), da obrigatoriedade da preservação ambiental, da prevenção, da obrigatoriedade de avaliações prévias em obras potencialmente danosas ao meio ambiente (EIA, RIMA), da publicidade, da reparabilidade do dano ambiental, da participação, da informação, da função socioambiental da propriedade, do poluidor-pagador, da compensação, da responsabilidade, do desenvolvimento sustentável, da educação ambiental e da cooperação internacional.

Uma visão ética ecocêntrica pode ser definida como o homem centrado em sua casa (Santos e Pimenta, 2007). “OIKOS” significa casa, em grego. Estuda o comportamento do homem em relação à natureza global, o que permite que o homem compreenda melhor a sua atuação e responsabilidade com os demais seres vivos. 
Assim, a ética deixa de ser apenas política e passa a ser um estudo extra-social, extrapola os limites intersociais do homem, e nasce a ética ambiental, que nos leva a desenvolver uma “humildade zoológica” (Santos e Pimenta, 2007). Para isso, é necessária a conscientização da problemática ambiental.

A visão ética ecocêntrica faz com que o homem se preocupe com suas ações e perceba que a natureza não está ali unicamente ao seu serviço, o que o leva a tomar atitudes coerentes em relação à natureza.

Essa ética é um compromisso criado por nós, sem nenhuma lei que não seja nossa consciência. É um compromisso de todos os conscientes. É ético, e não legal.
Todo compromisso ético reflete-se por ações éticas, que neste caso trarão resultados favoráveis à preservação ambiental, em consequência teremos a melhoria da qualidade de vida, pela criação de uma barreira ética que preserve a natureza em seu todo.

Ética ambiental é, assim, uma nova postura comportamental do homem, alicerçada em valores extra-sociais, e embasada em estudos científicos que englobem o binômio homem-natureza (Santos e Pimenta, 2007).
A prática desta ética trará satisfação subjetiva em cada indivíduo, e, em consequência, a sociedade humana. Enfim, é uma nova forma comportamental e uma nova esperança de vida.


Referências:

BARCHIFONTAINE, CP e PESSINI, L (1989) apud FONTINELE JUNIOR, K. Ética e Bioética em enfermagem. 3. ed. Goiânia: AB, 2007.
DINIZ, D e GUILHEM, D. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense, 2007. Coleção primeiros passos.
FONTINELE JUNIOR, K. Ética e Bioética em Enfermagem. Goiânia: AB, 2007.
HOTTOIS, G. O paradigma bioético. Lisboa: Ed. Salamandra, 1990.
_____. Les mots de La bioéthique. Bruxelas: Deboeck, 1995.
MARCOS, G. O homem e a degradação ambiental. Disponível em: < http://www.webartigos.com/articles/60041/1/O-HOMEM-E-A-DEGRADACAO
-AMBIENTAL/pagina1.html#ixzz1GRoXoiki. Publicado em: 25/02/2011.
PEGORARO, OA. Ética e Bioética: da subsistência à existência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
_____. Ética dos maiores mestres através da história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
ROCHA, VF. Meio ambiente e seus paradigmas. Disponível em: HTTP://www.webartigos.com.br/articles/60997/1/meio-ambiente-e-seus-paradigmas/pagina1.html#ixzzlGRoG2n21. Publicado em: 10/03/2011.
SANTOS, BSAS e PIMENTA, WJD. Direito Ambiental. Lavras: FAEPE, 2007.
SILVA, AS. Enfermagem frente à morte de crianças institucionalizadas de 3 a 6 anos de idade: uma análise dos artigos 15 a 17 do Estatuto da criança e do Adolescente. Monografia. Lavras, Universidade federal de Lavras, 2008.



quinta-feira, 11 de agosto de 2011

A ofensiva dos historiadores


Jéferson Dantas1

A materialidade do ofício dos historiadores são as fontes (periódicos, revistas, relatórios, iconografias, atas, cartografias, etc.) e, a partir delas, a investigação sócio-histórica se adensa e se complexifica de acordo com as ferramentas metodológicas provenientes de sua episteme. No que tange ao conhecimento histórico escolarizado, a pesquisa acadêmica oferece importantes subsídios para os professores da Educação Básica repensarem as suas práticas pedagógicas ou mesmo adotarem livros didáticos sintonizados com a reflexão permanente e o gosto pela pesquisa.

Contudo, os historiadores – profissão ainda não reconhecida/regulamentada pelo Congresso Nacional – estão impossibilitados de exercerem o seu ofício, principalmente aqueles que lidam com a história recente do país. Documentos relacionados à tortura durante o período ditatorial no Brasil (1964-1985) encontram-se indisponíveis, justamente, para os/as profissionais que mais necessitam destas fontes para a condução de suas investigações científicas. Países como Argentina e Chile têm prestado contas do seu passado histórico recente, não apenas para trazer à tona as chagas da Ditadura, mas para que as novas gerações conheçam e lutem por uma sociedade desprovida da lógica persecutória e de atentados à vida e à dignidade humanas. 
 
O ex-ministro da Defesa, Nelson Jobim, foi omisso ou incapaz de interceder junto às Forças Armadas a abertura dos documentos relacionados ao período ditatorial. Fica-nos a impressão de que não é importante remexer nas feridas do passado, protelando-se ou condenando ao esquecimento o que, efetivamente, não pode ser esquecido. Os historiadores lidam, essencialmente, com três categorias centrais: o tempo, o espaço e a memória. Na conjugação destas três categorias estrutura-se a ‘narrativa histórica’, delimitada temporalmente e dependente das fontes disponíveis. O Estado brasileiro, todavia, tem negado aos historiadores o direito da pesquisa, embora a Comissão de Direitos Humanos e Minorias no Congresso Nacional tenha aprovado a criação da Comissão Nacional da Verdade, que objetiva o esclarecimento da violação dos direitos humanos durante o regime militar.

A Lei da Anistia de 1979, uma excrescência jurídica que igualou torturadores e torturados, tentou apagar definitivamente qualquer possibilidade de dissenso. Entretanto, a História existe para continuarmos lembrando daquilo que insistentemente os variados veículos de manipulação insistem em menosprezar e destruir. Clio, portanto, manter-se-á insone e vigilante!

1 Historiador e Doutorando em Educação (UFSC). Secretário-Geral da ANPUH (Associação Nacional dos Professores de História) Seção Santa Catarina. E-mail: clioinsone@gmail.com.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A “loteria” do Poder

Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva

Slavoj Zizek é um pensador daqueles que fogem à regra. Filósofo esloveno, comunista convicto, afeito à Psicanálise e ao cinema com todas as suas facetas, não perde um segundo de pessoalidade e ironia em suas colocações. Um sujeito polêmico, mas incrivelmente otimista. Talvez duas forças destoem de seu temperamento, curioso e engraçado ao mesmo tempo. Pude perceber um pouco do universo de seu pensamento pelas entrevistas que concedeu recentemente à Globo News, como também por sua vinda recente à São Paulo, onde participou de uma série de outras entrevistas, uma delas publicada na Revista Cult, junho de 2011, nº 158.

O mais engraçado de suas declarações ultimamente foi o fato de admitir a possibilidade de um sorteio para se chegar ao poder, como numa espécie de loteria. Imagine você assistir da sua casa a um sorteio de seus candidatos pela TV ou pelo rádio, ou mesmo pela internet. O que você diria disso? Pois é. Uma alternativa discutida por esse filósofo que não diz nada à toa. Há por trás dessa ideia alguma coisa de muito, mas muito séria. Não é uma ideia de se jogar fora.

Repare bem que estamos em tempos de uma desconfiança muito grande na democracia, no seu sistema eleitoral, no caminho que se faz para se chegar ao poder em qualquer parte do mundo. As nossas eleições estão cada vez mais caras e ditam um ritmo de corrupção indesejada pela opinião pública. As ditaduras espalhadas pelo mundo estão caindo (caso da Tunísia e do Egito) porque não respondem às expectativas populares de subsistência mínima que vai da comida à economia passando pela ecologia. Ora, se assistimos à queda de regimes de extrema esquerda, também assistimos a grandes estragos em regimes políticos de extrema direita ao longo da história. Experiências de governo parecem ter frustrado a humanidade nos últimos decênios, ainda assim insistimos em voltar a alguns, como é o caso da insistência de Zizek pelas ideias de Marx e outros que defendem a força quase imorredoura das manifestações populares, das reivindicações das camadas trabalhistas em benefício da solidez do Estado e da qualidade de quem o governa. Com uma boa dose cômica em suas palavras, Zizek não abre mão de suas convicções pró-comunistas que vão da fina crítica ao liberalismo econômico dos países capitalistas, propondo uma derrubada gradual e não imediata do capitalismo à eleição de governantes por sorteio.

No Brasil, as reeleições parecem ser um entrave quanto à alternância do poder, muito embora se questione em algum momento a qualidade deste poder. Segundo Zizek, mesmo na Grécia, palco fundante da democracia, “as pessoas já sabiam que é preciso haver algum elemento de contingência na democracia. O único jeito pelo qual a democracia funcionaria seria combinar qualificação e contingência”(Rev. Cult, junho 2011, nº 158, p. 17).

Zizek sorri da fragilidade do sistema capitalista ao qual estamos submetidos, lembrando a crise econômica de 2008 que assustou a todos e sua relação com a democracia: “Há limitações na democracia como a conhecemos, mas os principais candidatos à sua sucessão não funcionaram bem... Em 2008, os bancos ocidentais estavam em pânico e não forneciam crédito. Na China, o poder central apenas ordenou aos bancos que o fizessem. É por isso que a Europa retrocedeu e a China cresceu... Os sonhos do século XX acabaram. Vocês, brasileiros, têm a sorte de não terem recebido uma dose muito grande de populismo. Na Argentina, o peronismo foi a pior catástrofe que aconteceu”(idem).

Ao comparar o populismo de Lula com o de Chávez, lança-se totalmente a favor de Lula: “Não vamos confundir populismo com apelo popular... Mas o trágico em Chávez talvez seja o fato de ele ter dinheiro demais, de modo que pode mascarar as dificuldades em vez de enfrentá-las”(idem). Para ele, o genial da democracia é o que as sociedades mais maquiam e escondem, a ideia de que o trono do poder estará sempre vazio: “E se dissermos que o trono está sempre vazio? O trono é ocupado apenas temporariamente e reocupado pelas eleições livres”(idem). É aqui onde mora o fiasco do sistema eleitoral brasileiro, as eleições não são tão livres assim. Há o direcionamento das mídias pelas propagandas sem limites quase que escolhendo por nós. Há o uso do dinheiro público desenfreado no período eleitoral que financia as mais questionáveis formas de adquirir voto. Há a cumplicidade popular que não resiste à estrutura corrupta das eleições no país: Ou por necessidade ou por oportunismo. A democracia está absolutamente restrita, muitas vezes, às condições de propaganda e marketing, bem como às estruturas de lista pronta dos partidos.

Com todo este cenário desolador da política brasileira, ainda assim é possível pensar seriamente numa “loteria” do poder? Diz Zizek que sim: “Quando Veneza era superpotência nos séculos XIV e XV, suas regras para a eleição eram a coisa mais louca. Não digo loucura completa, com a escolha de idiotas. Há regras para que os idiotas não cheguem lá. Mas, no limite, deve ser uma loteria”(idem). Diante do estado de coisas desarrumadas em que se encontra a estrutura das eleições democráticas no Brasil, unindo-se ao nefasto desgaste sem critério com que se elegem as pessoas mais despreparadas possíveis ao poder, não seria demais, tampouco exagero, criar uma malha fina com critérios rigorosos para que o Estado ganhe pessoas dignas, qualificadas e que atendam aos apelos populares de ecologia, economia e bem-estar social.

Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Especialista em Metafísica