Aleksandro Barbosa de Figueiredo[1]
Neste início de século, muito se
tem falado sobre o papel da educação na formação de cidadãos reflexivos, ativos
participantes da formulação de novos conhecimentos e do questionamento sobre a
pertinência e a validade dos já existentes (Lima,2016). Mais do que receber
informações, é importante que os alunos sejam educados para o pensamento. Nessa
perspectiva, ganha relevância a figura do professor reflexivo, “aquele que
reconstrói reflexivamente seus saberes e sua prática” (Miranda, 2006, apud
Backes, 2016, p.2). Para Nóvoa (2016, p.1) “é impossível alguém imaginar uma
profissão docente em que essas práticas reflexivas não existissem”. Entretanto,
apesar dessas práticas serem essenciais para a profissão, “elas não são
inerentes à profissão docente, no sentido de serem naturais” (ibid, p.1). Dessa
forma,
tem que se criar
um conjunto de condições, um conjunto de regras, um conjunto de lógicas de
trabalho [...] coletivos dentro das escolas, a partir das quais – através da
reflexão, através da troca de experiências, através da partilha – seja possível
dar origem a uma atitude reflexiva da parte dos professores. (ibid, p.1)
Ora, o professor reflexivo que se utiliza
de regras e lógicas de trabalho para repensar e aprimorar sua prática equivale
ao professor pesquisador, que se vale do método científico para melhorá-la. Ao
contrário da pesquisa acadêmica, que tem objetivos amplos, políticos e sociais,
a pesquisa do professor é utilitária, buscando conhecer a realidade para
transformá-la e a melhoria de suas práticas pedagógicas (Backes, 2016). Assim,
o professor pesquisador tem um papel fundamental numa educação que busque a
formação para o pensamento e não apenas para a reprodução de informações.
Entretanto, vimos que as práticas reflexivas não são parte natural da profissão
docente (Nóvoa, 2016). Assim, é fundamental propiciar aos professores, em
formação, novatos ou experientes, condições objetivas para que a prática
reflexiva metódica seja algo comum e natural.
Antes de tratarmos especificamente da
formação docente, é importante relembrar os resultados da Comissão sobre a
Educação do Século XXI, publicados em 1996, para caracterizar a educação para a
qual pretendemos formar os professores. Na introdução do relatório final da
comissão, denominada “A Educação ou a utopia necessária”, Jacques Delors
(UNESCO, 2010, p.5) afirma que
Perante
os múltiplos desafios suscitados pelo futuro, a educação surge comoum trunfo
indispensável para que a humanidade tenha a possibilidade deprogredir na
consolidação dos ideais da paz, da liberdade e da justiça social.No desfecho de
seus trabalhos, a Comissão faz questão de afirmar sua fé nopapel essencial da
educação para o desenvolvimento contínuo das pessoas edas sociedades: não como
um remédio milagroso, menos ainda como um “abre-tesésamo” de um mundo que
tivesse realizado todos os seus ideais, mas comouma via – certamente, entre
outros caminhos, embora mais eficaz – a serviçode um desenvolvimento humano
mais harmonioso e autêntico, de modo acontribuir para a diminuição da pobreza,
da exclusão social, das incompreensões,das opressões, das guerras...
Hoje,
quase duas décadas depois, essas considerações parecem ainda mais atuais e
necessárias. Entre os princípios fundamentais para atingir esses objetivos, a
comissão elencou os quatro pilares da educação ao longo da vida – (1) aprender a conhecer, (2) aprender a fazer, (3) aprender a
conviver e (4) aprender a ser.Segundo Luckesi (2003,
p.1)os dois primeiros correspondem a aspectos cognitivos práticos e os
dois últimos “tem a ver com a ética, com a
aprendizagem do viver consigo mesmo e com o outro”. Aprender a ser seria a base
de todos os outros,
o que significa dizer
que o cuidado de si mesmo serve de base para adquirir conhecimentos
científicos, para a aquisição de habilidades profissionais, assim como para
exercitar a convivência, a tolerância para com os outros. A ética da
convivência numa prática singular e plural, ao mesmo tempo; singular, na
formação da própria identidade, e plural, no respeito e na convivência com as
diferenças, sejam elas entre as pessoas, sejam entre etnias, culturas e modos
de ser. (ibid, p.1)
Para
esse autor os quatro objetivos são harmônicos e devem ser buscados ao mesmo
tempo. Para isso, segundo ele, é necessária uma epistemologia transdisciplinar.
O
termo Transdisciplinaridade foi criado por Jean Piaget em 1970, durante um
colóquio sobre interdisciplinaridade. Ele voltou a usar o termo em 1972 e 1977.
Na década de 1980, houve tentativas de aproximação trans-disciplinar, como o
Congresso de Córdoba de 1979 “Science etConscience” (Ciência e Consciência), o
Congresso de Veneza de 1986 “La Science devantle confins de la Science”(A
Ciência nas fronteiras da Ciência) e o Congresso de Paris de 1991 “Science et
Tradition” (Ciência e Tradição). Em abril de 1992 foi criado o “Grupo de
Reflexões sobre a Transdisciplinaridade” junto à UNESCO, fundado e coordenado
por BasarabNicolescu. Em novembro de 1994 foi realizado, no Convento de
Arrábida, em Portugal, o “1ºCongresso Mundial sobre a Transdisciplinaridade”,
quando foi redigida e publicada a Carta da Transdisciplinaridade. (CETRANS, 2010;
Santos, 2010).
A
Transdisciplinaridadesurgiu num contexto em que a evolução da ciência tinha
modificado radicalmente nosso conhecimento sobre a realidade, o que levou ao
questionamento das bases filosóficas e epistemológicas de nossa visão de mundo.
A visão mecanicista, com os paradigmas do racionalismo científico e da
realidade objetiva, governada por leis físicas e matemáticas exatas, desde o
século XVII determina nossa janela conceitual, os “valores, crenças,
princípios, premissas, conceitos e enfoques que modelam nossa percepção da
realidade e, portanto, nossas decisões, ações e interações e todos os aspectos
de nossa experiência humana no universo” (Tôrres, 2005, p.1). Essa visão de
mundo foi fundamental para o desenvolvimento científico e tecnológico dos
últimos séculos, mas sua lógica, baseada nos princípios da identidade[2],
da contradição[3]
e do terceiro excluído[4],
de Aristóteles (Luckesi, 2003), e suas implicações – linearidade,
monocausalidade, determinismo, reducionismo e imediatismo – reforçadas pelas
Leis de Newton, a tornam insuficiente para a compreensão da realidade revelada
pelas grandes descobertas do século XX, que trouxeram “mudanças importantes nos
conceitos científicos que explicam a visão da natureza e o próprio estudo da
ciência” (Tôrres, 2005, p.4).
Essas
mudanças começaram com Einstein, em 1905, com a publicação de três artigos. O
primeiro explicou o Movimento Browniano[5] e
provou matematicamente a existência do átomo. O segundo, sobre o Efeito
Fotoelétrico[6],
mostrou que a luz não é somente onda, mas também é composta de partículas – os
fótons. O terceiro foi a Teoria Especial da Relatividade, sobre os conceitos de
espaço e tempo, que mostrou que matéria e energia são a mesma coisa, podendo
ser convertidas uma na outra, conforme a famosa fórmula “E=mc2”[7]. A
segunda grande mudança foi a Física Quântica, que mostrou que a matéria não
existe em pontos fixos e determinados, o que existe são possibilidades de
existência. “A matéria não tem consistência em si. O que dá consistência à
matéria são as conexões entre seus componentes, são os relacionamentos” (ibid,
p.4). Além disso, o observador é parte indissociável da realidade observada. Em
conjunto, essas mudanças científicas mostraram que o Universo é formado por
matéria, energia e relacionamentos, é um processo.
A
descoberta da estrutura do DNA, realizada por Watson e Crick e publicada na
revista Nature em 1953, descortinou o papel fundamental da informação, que
impulsiona o Universo “por meio de todas as transformações e da manifestação de
todas as formas de vida” (ibid, p.4). Nessesentido, a matéria, a energia e os
relacionamentos são, respectivamente, os “meios de armazenamento, de transporte
e de multiplicação de dados para a geração de informação e conhecimento” (ibid,
p.4). Reciprocamente, a informação gera matéria, energia, relacionamentos e
novas informações.
Essas
mudanças serviram de base, a partir dos anos 60 do século XX, para estudos
sobre a Teoria do Caos, os Fractais, a Teoria das Catástrofes e a Lógica Fuzzy[8],
que em conjunto formaram a Teoria da Complexidade. Essa teoria mostra que a
realidade é não linear, caótica, fractal, catastrófica e difusa. Existe uma
interdependência essencial entre todos os fenômenos. “A realidade é inacabada,
é um eterno e caótico fluir” (ibid, p.5). Essa visão complexa de mundo altera
drasticamente os paradigmas da janela conceitual mecanicista, tendo implicações
relevantes em diversas áreas. Segundo Tôrres(ibid, p.6)
As mudanças
científicas que aconteceram no século XX afetaram, como ondas, não somente
odesenvolvimento da ciência e da tecnologia. Estão se transformando em
paradigma dominantena política, na economia, na educação e, também, nas
organizações. O paradigma dacomplexidade já vem se instalando ao longo dos
últimos trinta e cinco anos, embora muitaspessoas ainda não tenham consciência
da existência das teorias que convergem para amudança de época e de paradigma
que estamos presenciando.
Nesse contexto, a Transdisciplinaridade busca superar a
visão disciplinar, que se vale da fragmentação do conhecimento para estudar os
diversos aspectos da realidade, acreditando que a soma de conhecimentos
específicos é capaz de nos dar uma compreensão clara do mundo e de seu
funcionamento. A Transdisciplinaridade não pode ser confundida com a Multidisciplinaridade,
ou Pluridisciplinaridade, que “diz respeito ao estudo de um objeto de uma mesma
e única disciplina por várias disciplinas ao mesmo tempo” (Nicolescu, 2010,
p.10), nem com a Interdisciplinaridade, que “diz respeito à transferência de
métodos de uma disciplina para outra” (ibid, p.11). Para Nicolescu, a
transdisciplinaridade “não diz respeito nem ao método (nem portanto à
transferência do método), nem à justaposição de conhecimentos que fazem parte
de uma disciplina já existente” (Nicolescu, 1994 apud Santos, 2010, p.2). A Transdisciplinaridade,
na verdade, é “uma atitude rigorosa em relação a tudo o que se encontra no
espaço que não pertence a nenhuma disciplina” (ibid, p.2). Ou seja, “a
Transdisciplinaridade é complementar da aproximação disciplinar; ela faz
emergir da confrontação das disciplinas novos dados que as articulam entre si e
que nos dão uma nova visão da natureza e da realidade” (Carta da
Transdisciplinaridade, artigo 7º). Além disso, “a visão transdisciplinar é
deliberadamente aberta na medida em que ela ultrapassa o domínio das ciências
exatas pelo seu diálogo e a sua reconciliação não somente com as ciências humanas,
mas também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência interior” (Carta
da Transdisciplinaridade, artigo 5º).Assim, a utilização de uma epistemologia
transdisciplinar, cujos pilares são a consideração simultânea dos vários níveis
da realidade, a lógica do terceiro incluído[9] e a
complexidade (CETRANS, 2010), parece ser um excelente caminho para a formação
de educadores que estejam preparados para a consecução dos pilares da educação
para o século XXI, conforme a proposta da UNESCO. Para Luckesi (2003, p.16)
o educador-formador
necessita de abrir-se para uma lógica transdisciplinar se deseja atuar na
formação integral do ser humano, o que vai implicar numa formação que tem
presente, ao mesmo tempo, a corporalidade, a mente e a espiritualidade, ou
seja, aquilo que as tradições filosóficas sempre se serviram para definir o ser
humano como um ser, que, ao mesmo tempo, é corpo,mente e espírito.
É nesse contexto que consideramos a formação docente, visando
um professor que seja reflexivo, que pesquise metodicamente sua própria prática
e que esteja aberto à complexidade do Universo, através de uma epistemologia
transdisciplinar. Mas é necessário ter cuidado para que essa formação não
signifique o enquadramento em uma fôrma, um modelo pré-definido por algum grupo
de “especialistas”. Ao contrário, o termo formar se refere ao processo de dar
forma, de estruturar. Para Aristóteles, todas as coisas são constituídas de
matéria, aquilo de que o objeto é constituído, e forma, sua configuração
própria que o distingue de tudo o mais. Assim, formação (FORMA + AÇÃO)
corresponde à ação de constituir uma determinada forma. Para Luckesi (ibid, p.3)
na locução “formação do
educador”, o termo formação indica que o educador vai constituir a sua forma, a
sua essência, aquilo que faz com que ele seja o que é. Formar o educador é
criar e oferecer condições para o educando se faça educador.
Nesse sentido, o processo de formar um educador é bem distinto de enquadrar
em uma fôrma, é um processo existencial, que se configura ao longo da história
de vida de cada professor, a partir de “seus atos e suas interações com o mundo
e com os outros” (ibid, p.4).
Para atingir o objetivo de formar educadores segundo esse
paradigma é importante repensar e reestruturar os cursos de formação inicial.
Mais que isso, entretanto, é fundamental que os professores tomem para si o
“controle” de seu próprio processo de formação, através da pesquisa e reflexão
sobre sua prática e da troca de experiências com outros docentes em seus
processos individuais de formação. Para isso, é necessária a existência de
espaços adequados de formação continuada, em que os professores possam refletir
em conjunto sobre o que significa ser educador num mundo complexo e sejam
capazes de ultrapassar os limites impostos pela excessiva fragmentação
disciplinar do conhecimento.
A Tecnologia da Informação (TI), com seus espantosos
avanços nas facilidades de comunicação, oferece a possibilidade de integração
de professores com objetivos comuns, sejam eles específicos de sua área de
atuação ou relativos a seu processo contínuo de formação. A criação de ambientes
virtuais de aprendizagem, em que professores possam tratar de temas relevantes
para sua atuação e trocar experiências sobre suas práticas, é vital para que
possamos transformar[10]a
educação, adequando-a aos desafios da complexidade e da formação integral do
ser humano, conforme os objetivos da educação do século XXI propostos pela
UNESCO – aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e
aprender a ser.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACKES,
Lucas Henrique. Professor pesquisador. Disponível em
.
Acesso em 31jan. 2016.
CENTRO DE
EDUCAÇÃO TRANSDISCIPLINAR – CETRANS. Educação e Transdisciplinaridade.
Disponível em
. Acesso em
28jun. 2010.
LIMA, Marcos
Henrique Meireles. O professor, o pesquisador e o professor-pesquisador.
Disponível em
.
Acesso em 31jan. 2016.
LUCKESI,
Cipriano Carlos. Formação do educador sob uma ótica transdisciplinar. Revista
ABC Educatio, v. 4, n. 20, nov. 2003.
MIRANDA,
Marília G. de. O professor pesquisador e sua pretensão de resolver a
relação entre a teoria e a prática na formação de professores. Em: O
papel da pesquisa na formação e na prática dos professores. Campinas: Papirus,
5ed, 2006 apud BACKES, 2016.
NICOLESCU,
Basarab, A Visão do que há Entre e Além, entrevista a Antónia de Sousa emDiário
de Notícias, Caderno Cultura, Lisboa, 3 de fevereiro de 1994, pp. 2-3,apud
SANTOS, 2010.
NICOLESCU,
Basarab. Um novo tipo de conhecimento – Transdisciplinaridade. Em:CETRANS. Educação
e Transdisciplinaridade. Disponível em
. Acesso em 28jun.
2010.
NÓVOA,
Antonio. O professor pesquisador e reflexivo. Disponível em
.
Acesso em 31jan. 2016
SANTOS,
Renato P. dos. Transdisciplinaridade. Disponível em
.
Acesso em 28jun. 2010.
TÔRRES, José
Júlio Martins. Teoria da Complexidade: uma nova visão de mundo
para a estratégia. Em: 1º Encontro Brasileiro de Estudos da Complexidade
(EBEC). Curitiba, 11 a 13 de junho de 2005.
UNESCO. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório final da Comissão sobre a
Educação do Século XXI. Paris: UNESCO, 1996. Tradução pela representação da
UNESCO no Brasil, 2010.
[1]
Mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Psicopedagogia e
Neuropedagogia (atual Neuroeducação).
[2]Princípio
da Identidade – A (alguma coisa, pessoa, ação, processo), em uma determinada
circunstância de espaço e tempo, será sempre A (A=A).
[3]Princípio
da Contradição – Na mesma circunstância, A não pode ser sua negação (A não pode
ser não-A).
[4]Princípio
do Terceiro Excluído – Entre uma coisa e sua negação (A e não-A) não pode
existir uma terceira possibilidade.
[5]Movimento
Browniano – Movimento aleatório das partículas suspensas num fluído.
[6]
Efeito Fotoelétrico – Emissão de elétrons por um material, geralmente metálico,
quando submetido à radiação eletromagnética.
[7] E
= mc2 – Energia (E) é igual à massa (m) vezes a velocidade da luz (c) ao
quadrado.
[8]Lógica
Fuzzy ou Difusa – Extensão da lógica booleana que admite valores lógicos
intermediários entre o FALSO e o VERDADEIRO, por exemplo o valor intermediário
TALVEZ.
[9]Entre
e para além de A e não-A existem muitas outras possibilidades.
[10]Transformação
(TRANS + FORMA + AÇÃO) – “Utilizar-se de variados elementos já existentes e
integrá-los numa nova ordem ou num novo modo de ser.” (Luckesi, 2003, p.3)
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