sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A Liberdade nos textos 'A Náusea', 'O Ser e o Nada' e 'O Existencialismo é um Humanismo'


Andressa S. Silva

"Liberdade é o que você faz com o que tem sido feito para você"
(Sartre)

Nestas obras pode-se obter a teoria básica, o alicerce do existencialismo de Sartre. Estas três obras mostram que uma possível natureza humana não existe na realidade, assim sendo, não há uma definição do homem que seja prévia ao ato de existir. Em outras palavras: não há uma essência precedente, capaz de determinar aquilo que cada indivíduo vai ou deve ser.
Pudemos verificar que nos escritos de Sartre, o conceito de liberdade está associado à solidão, responsabilidade, angústia, conhecimento e escolha. Faz-se mister estudar as obras ? O Existencialismo é um Humanismo, A Náusea e O Ser e o Nada ? com o propósito de averiguar com maior exatidão as bases do existencialismo e, por conseguinte, do conceito de Liberdade para Sartre.

1. A Náusea
Na sua primeira novela (A Náusea), de 1937, Sartre busca destituir de suas bases tudo aquilo que possa emprestar um sentido à existência do homem; põe-se em dúvida o sentido da existência humana em geral, e também o sentido do outro ? de Deus, da história, das artes. A experiência da náusea, descrita em detalhes, mostra-se aos poucos uma força reveladora, neste texto.
Foi uma das primeiras formulações bem divulgadas do pensamento existencialista. Foi escrito sob a forma do diário de Roquetin, historiador que busca refúgio na cidade de Bouvilles, fictícia. Segundo Marcondes (2007), seria a cidade Le Havres, onde Sartre exerceu seus primeiros anos de magistério. Roquetin escreve nesse refúgio a biografia de um nobre francês do século XVIII, o Marques de Rollebon. O decorrer do texto é, então, uma narrativa do cotidiano de Roquetin, fazendo-se caricaturas de personagens burgueses com quem tem a oportunidade de se encontrar no dia-a-dia em Bouvilles, e, ao mesmo tempo, sua tomada de consciência do vazio e do absurdo de sua existência ao mesmo tempo em que realiza pesquisas na biblioteca da cidade sobre o marquês.
Ao iniciar suas pesquisas, Roquetin passa a perceber que vem mudando do decorrer das pesquisas: "Alguma coisa me acontece, já não posso mais duvidar. (...) não foram necessários mais do que três segundos para que todas as minhas esperanças fossem varridas." (Sartre, 1986, p. 168). Fica aqui a informação de que Roquetin foi aos poucos percebendo a existência, sem saber que a é, e vendo como se dá a mudança pessoal, a partir dessa percepção.
No decorrer da narrativa, Roquetin percebe que as pessoas nem sempre podem perceber o absurdo das próprias existências, mas que ele, Roquetin, o percebe. E acrescenta alegando que o sentimento de absurdo seria a chave da consciência da própria existência, a saber: "Éramos um monte de existências enfadadas, embaraçadas de nós mesmos, sem a menor razão para estarmos aí, nem uns nem outros; cada existente, confuso, inquieto, sentia-se demais em relação aos outros. (...) E eu? fraco, enlanguecido, obsceno, digerindo, movendo mornos pensamentos? eu também era demais (...) A palavra absurdo nasce agora sob a minha pena (...) E sem nada formula claramente , compreendi que havia encontrado a chave da existência, a chave de minhas náuseas, de minha própria vida. De fato, tudo o que consegui aprender em seguida se reduz a essa absurdidade fundamental." (Sartre,1986,p. 163-4).
Essa percepção do absurdo gera a náusea, um sentimento de repulsão, de ira e cólera que se manifesta contra esse absurdo, apenas para as pessoas que percebem esse absurdo inicial. "Mas eu, há pouco, fiz a experiência do absoluto: o absoluto ou o absurdo. (...) Eu não estava surpreso, sabia que era o Mundo, o Mundo em sua nudez que se mostrava repentinamente, e eu sufocava de cólera contra esse grande absurdo." (Sartre, 1986, p. 170)
O sentimento da náusea é como a concretização da tomada de consciência do absurdo. Mas ao compreender o processo de absurdo pelo qual passa, ao viver a própria náusea de maneira intensa, Roquetin paradoxalmente encontra a sua liberdade. Essa tomada de consciência se descreve detalhadamente no final do romance.
Assim, no romance A náusea, a liberdade está associada ao conhecimento de si mesmo, bem como à angústia.

2. O Ser e o Nada
Obra complexa de Sartre, extensa, e que trata de assuntos diferentes. Não foi escrita como um romance ou uma novela, e sim como livro filosófico propriamente dito. Trata, no decorrer do texto, das teses fundamentais do existencialismo, da intersubjetividade e da liberdade.

2.1 Teses fundamentais do existencialismo
Nesta obra Sartre aprofunda os conceitos de ser em-si e para-si. Reale e Anistieri (2006, p. 228), definem estes dois termos da seguinte maneira: "A consciência é sempre consciência de algo, algo que não é consciência. O exame da consciência mostranos que desde o início o ser em-si, isto é, os objetos que transcendem a consciência, não são a consciência. Eu tenho consciência dos objetos do mundo, mas nenhum deles é minha consciência. (...) O que tem consciência é o para-si. A consciência que vem a ser a existência, ou o homem é, portanto, absolutamente livre. (...) A consciência não é um objeto. O ser é pleno e completo. (...) A consciência é liberdade."
Corrobora com a definição de ser para-si proposta pelo próprio Sartre: "O em-si é pleno de si mesmo e não se poderia imaginar plenitude mais total, adequação mais perfeita do conteúdo ao continente: não existe o menor vazio no ser, a menor fissura por onde pudesse introduzir o nada." (Sartre, p. 116)
Entretanto, o homem é o ser que transmite o nada, que carrega o nada para o mundo. E esse nada se transmite para o mundo por meio da tomada de consciência, da percepção do absurdo que é a essência de nossa existência: "O homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo" (Sartre, p. 60).
Mas o homem, o ser para-si, consciente, também é definido como ser para os outros. O outro não é aquele que é visto por mim, mas aquele que me vê. Reale e Anistieri (2006, p. 229) comentam que: "O olhar de outro me fixa e me paralisa, ao passo que, quando o outro estava ausente, eu era livre, isto é, era sujeito e não objeto. Quando aparece o outro, portanto, nasce o conflito."
Este conflito mostra que, pelo olhar de outros, a pessoa perde a autonomia, perde a liberdade. Assim, pudesse perceber que a liberdade está associada à solidão. No livro O Ser e o Nada, Sartre afirma que a consciência de si mesmo é responsável por ela mesma, Mas não desconsiderando o outro ser, uma outra consciência: "O para-si é responsável em seu ser por uma relação com o em-si ou, se preferir, ele se produz originariamente sobre o fundamento de uma relação com o em-si. (...) A consciência é um ser para o qual se trata, em seu ser, do problema de seu ser enquanto esse ser implica um ser outro que não ele." (Sartre, p. 220) "A consciência nada tem de substancial, é uma pura ?aparência?, no sentido de que só existe na medida em que aparece." (Sartre, p. 23). E só pode aparecer na medida em que é vista por outras pessoas. Só mostramos nossa consciência por que outras pessoas nos vêem, e assim ela toma forma e aparência.
"O ser da consciência não coincide consigo mesmo em uma adequação plena... A característica da consciência é que ela é uma descompressão do ser. É impossível, com efeito, defini-la como coincidência consigo própria. Desta mesa, posso dizer que ela é pura e simplesmente esta mesa. Mas de minha crença (por exemplo), não me posso limitar a dizer que é crença: minha crença é consciência de crença." (Sartre, p. 116).
Assim, nesta obra, Sartre fala da necessidade da convivência com outros semelhantes, que possam nos mostrar nossa consciência, pois o em-si necessita do olhar de outros para perceber a própria consciência.

2.2 Intersubjetividade
Complementando os conceitos de ser em-si e para-si, no livro O Ser e O Nada, Sartre fala da Intersubjetividade, de como o outro é importante na determinação da minha própria consciência. "O outro é, por princípio, aquele que me olha." (Sartre, p. 315), bem como "O olhar é, antes de mais nada, um intermediário que remete de mim a mim mesmo." (Sartre, p. 316), pois pelo olhar de outras pessoas pode-se refletir e pensar na própria existência. O olhar do outro mostra como cada um existe, cada ser para-si só pode perceber-se por meio do olhar de outro para-si. "Quando sou visto, tenho, de repente, consciência de mim enquanto escapo a mim mesmo, não enquanto sou o fundamento de meu próprio nada, mas enquanto tenho o meu fundamento fora de mim. Só sou para mim como pura devolução ao outro." (Sartre, p. 318)
Na obra, Sartre comenta ainda a respeito da vergonha que um para-si sente ao perceber que está sendo observado por outro para-si, do incômodo que essa percepção traz: "A vergonha é a vergonha de-si, ela é reconhecimento de que eu realmente sou esse objeto que o outro olha e julga. Só posso ter vergonha de minha liberdade enquanto ela me escapa para tornar-se objeto dado." (Sartre, p. 319)

2.3 Liberdade
Na obra mais filosófica analisada neste trabalho, Sartre também deixou informações sobre o que seria o conceito de liberdade para ele. Começa afirmando que o que separa uma pessoa das coisas (o em-si do para-si) é apenas a liberdade: "Somos separados das coisas por nada, apenas por nossa liberdade; ela é que faz que haja coisas com toda a sua indiferença, sua imprevisibilidade e sua adversidade, e que nós sejamos inelutavelmente separados delas, pois é sobre um fundo de nadificação que elas aparecem e que se revelam como ligadas umas às outras." (Sartre, p. 591)
Ainda refere-se à liberdade como resultado de escolhas que os homens são obrigados a fazer, onde "A natureza do passado é dada ao passado pela escolha original de um futuro" (Sartre, p. 578), ou seja, o passado só é passado porque escolhemos o futuro, e o passado não podemos alterar. E o tempo passado tem uma força intrínseca, que é o futuro, assim, o passado é forte na medida em que nele se localizam os acontecimentos que proporcionam a escolha do futuro, sendo que "A única força do passado lhe advém do futuro" (Sartre, p. 580).
Considerando que o passado não pode ser alterado, que nele realizaram-se as escolhas que torna o presente e o futuro reais, então, o conceito de liberdade neste texto está relacionado à escolha, responsabilidade e angústia: "A liberdade que é minha liberdade permanece total e infinita." (Sartre, p. 632), visto que um homem não tem capacidade de livrar-se da liberdade; sendo então obrigado a ser livre e exercer esta liberdade, o homem deve ter consciência de sua responsabilidade: "Eu sou responsável por tudo, salvo minha própria responsabilidade, por que eu não sou o fundamento de meu ser" (Sartre, p. 641). O homem não pode deixar de ser livre, o que gera a angústia.
"A liberdade é o único fundamento dos valores e nada, absolutamente nada, me justifica ao adotar tal ou tal valor, tal ou tal escala de valores. Enquanto ser pelo qual os valores existem eu sou injustificável. E minha liberdade se angustia de ser o fundamento sem fundamento dos valores" (Sartre, p. 76).
Assim, no livro O Ser e o Nada, Sartre associa o conceito de liberdade à angústia, responsabilidade e escolha.

3 O Existencialismo é um Humanismo
O título da obra O Existencialismo é um Humanismo justifica-se pela posição sartreana de que o existencialismo seria a única visão filosófica que deixa ao homem uma possibilidade de escolha. No início desta obra, Sartre afirma a existência de dois tipos de existencialistas, os cristãos e os ateus, assunto que já foi abordado neste trabalho. Então seria um humanismo por que auxilia o homem nesta caminhada em busca da própria elaboração como ser humano.
Para Sartre, o homem se constitui de angústia, que se manifesta na oportunidade de decisão, e não frente à morte, como anteriormente associado por outros filósofos. O homem não pode escapar das escolhas, pois se vê obrigado a esse compromisso. Assim então, já que o homem não pode escolher sobre a possibilidade de escolher ou não, sua escolha é exatamente a de não escolher. "Sou responsável por mim mesmo e por todos, e crio uma certa imagem do homem que eu escolho: escolhendo a mim, escolho ao homem" (Sartre, 1987, p. 27).
Nesta mesma obra (p. 24), temos o primeiro princípio do existencialismo, a saber: "Se Deus não existe, há ao menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por algum conceito e que esse ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. (...) O que significa aqui que a existência precede a essência? Isso significa que, primeiramente, existe o homem, ele se deixa encontrar, surge no mundo, e que ele só se define depois. O homem tal como o concebe o existencialista não é definível por que, inicialmente, ele nada é. Ele só será depois, e ele será o que se fizer. Assim, não existe natureza humana, já que não há Deus para concebê-la.
O homem é apenas não somente tal como ele se concebe, mas como ele se quer, e como ele se concebe após existir, como ele se quer depois dessa vontade de existir ? o homem é apenas aquilo que ele faz de si mesmo. Tal é o primeiro princípio do existencialismo." (Sartre, 1987, p. 03).
Dizer que a existência precede a essência implicou na ocorrência de críticas. Mas Sartre esclarece o assunto: "Que queremos dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem, antes de mais nada, é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projetar no futuro (...) Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de por todo o homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência. E, quando dizemos que o homem é o responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens." (Sartre, 1987, p. 04).
Apesar de todas as críticas e dos sentimentos de angústia e orfandade declarados no decorrer da obra, Sartre termina o texto deixando uma mensagem de otimismo, em que demonstra acreditar num futuro mais claro e promissor à humanidade, decorrente da tomada de consciência do absurdo e das escolhas que somos obrigados a fazer.
Estas escolhas dizem respeito não só ao homem individualmente, mas a muitas pessoas em volta: "Nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela engaja a humanidade inteira." (Sartre, 1987, p. 26). Deve-se atentar para o fato de que, qualquer que seja a escolha feita, implica em inclusão de outras pessoas, as que estão em nossa volta, e às vezes alguns desconhecidos também. Se alguém opta por agir dentro das leis, seguindo todos os seus deveres de cidadão, por exemplo, então provavelmente não comprometerá a vida de nenhuma pessoa em sua volta. Entretanto, seguindo o mesmo exemplo, se alguém opta por transgredir alguma regra, e matar uma pessoa, por exemplo ? fato muito frequente nas obras de Sartre? Então implica em sofrimentos para a família dessa vítima, aos amigos, e à consciência do assassino. Neste sentido, no da reflexão sobre as atitudes tomadas, Sartre refere-se à abrangência da responsabilidade que qualquer ação nossa possa cometer.
Ainda nesta obra, Sartre descreve o seu conceito de má-fé, sendo relacionado às desculpas que qualquer homem possa dar aos seus atos, ao não reconhecer sua liberdade, que é absoluta e necessária: "Todo homem se refugia na desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um determinismo é um homem de má-fé." (Sartre, 1987, p. 81). O homem é, então, responsável pelos seus atos, pelo uso que faz de sua liberdade, deve estar engajado no projeto do que faz com sua própria liberdade com sinceridade e afinco, pois só é homem, só é um ser para-si ao passo em que atua nos próprios projetos e neles acredita: "Cada vez que o homem escolhe seu compromisso e seu projeto com toda a sinceridade e com toda a lucidez, torna-se-lhe impossível preferir um outro." (Sartre, 1987, p. 79); "O homem é apenas seu projeto, só existe na medida em que se realiza, ele é tão-somente o conjunto de seus atos." (p. 55)
Desta forma, na obra O Existencialismo é um Humanismo, pode-se associar a liberdade aos conceitos de angústia, bem com o de responsabilidade.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Estupidez inglória!


Nei Alberto Pies
“A vida não é qualquer coisa mas é sempre, simplesmente,
a ocasião para qualquer coisa” (Viktor Frankl)

Faz bom tempo que a criminalização daqueles e daquelas que lutam por melhores condições de dignidade humana vem sendo denunciada. Mas parece que esta violência, como outras tantas, repete-se. Alguns até passam a aceitá-la como compatível aos padrões de convivência social. O Estado, instituído como guardião dos direitos, é o primeiro que os viola quando reprime violentamente aqueles e aquelas que se organizam pacificamente para buscar educação, terra, trabalho, saúde, segurança, lazer... Estaríamos desaprendendo democracia? Sem liberdade de expressão e de organização, que democracia estará sendo construída?
A ordem, associada ao progresso, parece mover novamente o imaginário daqueles que veem a democracia no ideal, no abstrato, difícil de ser construída. Nem todos estão convencidos de que a democracia pode ser desordem, uma vez que “não existe democracia sem caos, confusão, entropia. A democracia é o sistema do dissenso. Na verdade, a democracia é um equilíbrio instável de ordem e desordem. Em alguns momentos, a desordem é mais importante do que a ordem. Tudo, claro, depende do grau de ordem e desordem” (Juremir Machado daSilva).
A criminalização é a face perversa do Estado e da sociedade que não permitem que a cidadania exerça a condição de sujeito de direitos. Quem luta por seus direitos, e pelos direitos dos outros, é facilmente taxado de criminoso, acusado e condenado sumariamente. Os estigmas e preconceitos sociais atribuídos àqueles que lutam provocam impactos negativos para o exercício da condição de seres humanos, cidadãos e seres de vida social. Assis da Costa Oliveira define a criminalização dos movimentos sociais como sendo: “uma ideologia que possibilita um conjunto de práticas de cunho repressivo, repulsivo e/ou permissivo, com conseqüências físicas, mentais e sociais para o movimento e para as pessoas nele contidas”. Existirá agressão maior do que esta? Não importa se maior ou menor, sempre agressão!
Os consensos é que constituem a ordem democrática, muito antes das leis e das imposições arbitrárias. Mas, como perderam-se as causas, sobraram os interesses. Poucas causas sociais e humanitárias são capazes de mover e agregar, daí a dificuldade de construir consensos e acordos. Os interesses, pessoais, econômicos e corporativos, sucumbem as possibilidades de pôr as estruturas de organização econômica, social e política a favor da dignidade humana.
A democracia nasceu das palavras, da retórica e da persuasão. Com as palavras em descrédito, sobraram atitudes típicas da pré-história. Valeria assistir ao filme “A guerra do Fogo” para dar-se conta da estupidez inglória. Como escreve Marcos Rolim, “a democracia que temos já não tem política. Nela, o futuro se ausentou porque as palavras não autorizam expectativas. Será preciso reinventá-la, entretanto, antes de desesperar. Porque o desespero é só silêncio e o melhor do humano é a palavra”.



Nei Alberto Pies, professor e ativista em direitos humanos

 

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Dois caminhos e um só destino


Armando Correa de Siqueira Neto*

A natureza nos favoreceu com várias informações genéticas; destacam-se duas: sobrevivência e adaptação ao custo do egoísmo e convivência altruísta. A primeira já se evidenciou mais claramente desde os estudos evolucionários de Charles Darwin. A segunda, contudo, começa a despontar recentemente através dos trabalhos realizados na Universidade Harvard, pelas mãos do biólogo evolucionário Marc Hauser, cuja publicação recebeu o nome de “Mentes Morais” – o cérebro possui um mecanismo geneticamente determinado para adquirir regras morais. Portanto, estamos diante de dois extremos severos que geram conflito em grossa parte do tempo de incontável número de pessoas. Por que coexistem dentro de nós duas informações de peso que se chocam tão intensamente, podendo causar, em última análise, alguns distúrbios mentais. Um desatino desnecessário aparentemente.
Para que o ser humano pudesse sobreviver constou-se em seu DNA o vale-tudo da sobrevivência e do aperfeiçoamento, levando-o a se modificar e alcançar aptidão necessária à seleção natural. Do contrário, ele (e qualquer projeto de descendência) já se encontraria extinto. Por sorte, a inteligente e instintiva informação genética é superior à nossa capacidade de raciocinar, sobrepondo-se à ingenuidade e passividade que inevitavelmente já teriam nos apagado do livro da vida. Há algo grandioso e imperceptível nesta sábia arquitetura, não acha? Mesmo Darwin concordou à sua maneira, ao descrever: “Não me parece haver qualquer incompatibilidade entre a aceitação da teoria evolucionista e a crença em Deus.”
Por outro lado, a programação genética que deve facilitar a aquisição e a aceitação psicológica das regras para o adequado convívio social e o consequente desenvolvimento do altruísmo, incide sobre o lado sobrevivência-a-qualquer-custo (e vice-versa), controlando parte da sua potência, a princípio perigosa caso nada lhe detenha, sem, no entanto, lhe enfraquecer em demasia naquilo para o que foi previamente determinada. Novamente nos deparamos com a providencial sabedoria invisível, não é? Sem esse sentimento de preocupação alheia (ainda que lhe falte aperfeiçoamento na transição ego-mundo) também já teríamos nos extinguido.
Então, faltam-nos consciência e ajuste à frente, pois se trata de uma enorme jornada acerca do desenvolvimento humano. Por tal razão, dispomos das essenciais informações genéticas que tanto nos estimulam ao movimento, ora conflitante, ora evolutivo. Dois caminhos e um só destino. Sobrevivência e altruísmo opondo-se, regulando-se e, finalmente, gerando o terceiro e vital elemento: a evolução.


*Armando Correa de Siqueira Neto é psicólogo (CRP 06/69637), diretor da Self Consultoria em Gestão de Pessoas, palestrante, professor e mestre em Liderança pela Unisa Business School. Coautor dos livros Gigantes da Motivação, Gigantes da Liderança e Educação 2006. E-mail: selfcursos@uol.com.br

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Somos destinados à beleza, ao jardim...

Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva

De pronto, ponho-me a escrever. É fascinante o mistério que envolve as coisas. Assim o é com a beleza, pois há muita beleza no mundo. A beleza é fascinante, é divina, é encantadora, mas é preciso ouvir a voz das coisas, admirar-se com a vida, admitir o mistério. Há algo escondido na imensa vastidão da aparência. As pessoas querem ouvir geralmente o que lhes agrada, o que faz bem aos ouvidos, às suas necessidades e o que as colocam novamente na dinâmica da vida. Isso faz sentido porque elas estão tentando alimentar sua subjetividade. Talvez, por isso, as pessoas sejam constantemente mais seduzidas pela beleza do que pela verdade. A beleza está mais ao alcance dos olhos do que a verdade. A beleza parece ser mais acessível, talvez não, mas o que importa é que ela está em algum lugar, em algum estalo da natureza. Ela se esconde e se mostra rasgadamente aos sentidos. Alguém já disse que a beleza é filha do olhar. Eu acrescento... de um olhar periférico e profundo, aparente e imanente, geral e singular. Ela é filha de um olhar cuidadoso, atencioso. Às vezes, nem é preciso olhar, mas sentir, imaginar talvez.
Mas, definitivamente, de uma coisa eu esteja certo, em tudo isso será preciso recolher o olhar e voltar a cultivar uma admiração irrestrita por um jardim. Como encontrar um jardim nas cidades movimentadas e poluídas? Como encontrar um jardim no deserto da vida? Como encontrar um jardim nos gélidos edifícios das grandes cidades? Como cultivar um jardim nas cidades pervertidas pelo consumo e pelas drogas? Como cultivar um jardim em nós? Deus, Epicuro, Francis Bacon, Rubem Alves... Quantos não falaram em jardins! Quando estou só caminhando em meus pensamentos utópicos, penso em jardins!
Não é assim a experiência de um nômade perdido na imensidão do deserto! Os povos do oriente vivem mais do que nós em contato com o deserto, talvez por isso vivam obcecados à procura de um jardim, de um oásis. Tal convivência com o deserto provoca nessas pessoas uma necessidade cortante de água, de verde, de plantas, de flores, de comida, de frescura, de abrigo, de proteção, de um lugar... As areias e o sol do deserto deixam essas pessoas não só extenuadas fisicamente, mas as deixam com uma sensibilidade e imaginação de tudo que é contrário ao deserto à flor da pele. Seria quase impossível não pensar em água de coco no deserto, não pensar num poço se excedendo de água ou numa fonte de água fresca jorrando sem parar. Se no deserto a terra não é fértil, a imaginação compensa esta falta. Não foi à toa que Saint-Exupéry falou tão maravilhosamente do deserto em seu livro “O Pequeno Príncipe”, numa certa altura ele diz como ninguém que o deserto é belo porque esconde, em algum lugar, uma fonte. Isto quer dizer que em algum lugar do deserto pode haver beleza. Em algum lugar do deserto há um jardim.
Vejam como é magnífico, muitos em seus pensamentos buscaram jardins, falaram bem dos jardins, das flores, da frescura dos perfumes que emanam delas, da beleza com a qual se veste, das inúmeras espécies que se estendem pelo mundo afora; como também da necessidade da natureza de se viver num jardim filosoficamente, para bem viver, para uma vida boa. Deus criou um jardim e nos colocou lá. Desde o início, diz Rubem Alves, “somos destinados ao jardim, somos destinados a ser jardineiros. O sonho do jardim apareceu entre os hebreus, porque eram nômades que moravam no deserto. Deserto é areia, é terra estéril, é escorpião, é cobra, é pedra, é secura, é sede”. Daí o sonho que lateja em nós à procura do jardim. Epicuro comprou um jardim em oposição à pólis desacreditada pelos gregos. Ele viu sabiamente que os homens queriam se recolher em comunidade num jardim. E assim formou, em pleno declínio da democracia, um jardim. “Compraram, então, um jardim na vizinhança, um pouco fora dos limites da porta de Dipylon, e passaram a cultivar alguns vegetais, provavelmente bliton(repolho), krommyon(cebola) e kinara(um ancestral da moderna alcachofra, cuja base era comestível, mas não as escamas). Sua dieta não era luxuosa nem abundante, e sim saborosa e nutritiva. Como Epicuro explicou a seu amigo Meneceu, 'O sábio não escolhe a maior quantidade de comida, mas a mais agradável'”(In DE BOTTON, Alain. As Consolações da Filosofia. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 71-72) . No intuito de viver conforme a natureza é que se buscou morar num jardim: “Portanto, sendo tal caminho útil a todos os que se familiarizaram com a investigação da natureza e desse modo de viver, tiro principalmente a minha calma, preparei para teu uso uma espécie de epítome e um sumário de elementos fundamentais de minha filosofia em sua totalidade”(D.L.,X,37).
É praticamente unânime a opinião de que o jardim é o lugar de maior repouso para o espírito do homem. O jardim é lugar de sossego, descanso e refrigério para a alma. No jardim, à sombra das árvores, em meio aos perfumes das orquídeas e margaridas, com borboletas esvoaçando suas asas por sobre as flores numa policromia admirável de cores e beleza, retomamos o rumo certo de nossas vidas e nos permitimos sonhar, pensar, filosofar. Não sei se disse o que tive intenção de dizer, no entanto, reforço a ideia de que no jardim podemos nos lembrar de onde viemos e de que estamos em harmonia com o todo, somos partes do todo; pensamos também o quanto é saboroso mexer com a terra e sentir o cheiro do mato; respirar ar puro, bem como ter a consciência de que a natureza é perfeita e precisa ser preservada, cuidada, porque se emancipa a todos nós. “Deus Todo-Poderoso foi quem primeiro plantou um jardim. Na verdade, plantar jardins é o mais puro dos prazeres humanos, isto é, aquele que constitui maior repouso para o espírito do homem; sem jardins, edifícios e palácios não passam de construções grosseiras”(Francis Bacon).

Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Licenciado em Filosofia pela UERN e Especialista em Metafísica pela UFRN

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

60 segundos


Armando Correa de Siqueira Neto*

O tempo é uma dimensão pitoresca, pois ele pode ser percebido conforme o gosto do freguês. Se a experiência é boa, o tempo voa. Se ela é desprazerosa, dura uma eternidade. Para o jovem, custa a passar. Para o idoso, anda a galope. Tempo de trabalho para a aposentadoria, então, nem se fale. Para aquele que labuta, e não gosta do que faz, diz-se comumente: “Dá dez da noite, mas não chega o fim da tarde”. Quem dormiu tarde (sem contar o porre da noite anterior) e precisa madrugar para enfrentar o cabo do guatambu: que sina! O tempo é, pois, muito, pouco, bom, ruim, marcante, insignificante, coerente, insensato...
Todavia, há um intervalo de tempo que merece a nossa mais profunda reflexão. Refiro-me aos sessenta segundos de duração das nossas preocupações relacionadas às penúrias que assolam o planeta. Ou seja, os jornais estampam a tragédia e nos sentimos mal e pensamos, por exemplo, acerca da pobreza que desnutre outros seres humanos - em 2014, o total de pessoas subnutridas deverá superar a marca de 1 bilhão, conforme a estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU). Tal atenção por nós dispensada, dura geralmente um minuto. Em seguida, sem qualquer cerimônia, nos voltamos às amenidades, e, em alguns casos, às queixas pessoais sobre todo tipo de situação que chateia, tal como a falta de dinheiro para comprar um novo celular (o quarto ou quinto, talvez), um tênis mais incrementado (apesar de já existirem outros tantos no armário), uma bolsa que combine com a sandália creme (afinal, o que os outros vão achar?), entre outros.
Assistimos atônitos aos noticiários que revelam os desmatamentos florestais, o uso desregrado da água e sua provável escassez futura e sobressaltamos o ânimo, apontando o dedo da culpa para todos os lados (menos para nós próprios), num gesto de revolta, que dura... Sabe quanto? Sessenta segundos! Lá está o tempo novamente, em sua elasticidade mais breve. Mas preferimos gastar as nossas energias e boa carga horária com a mesquinhez pessoal. Tal consumo, infelizmente, rouba a cena na qual deveria, de forma equilibrada, permitir maior quantidade de tempo para a essencial ponderação que deve eleger assuntos inquestionavelmente mais relevantes. Não se pretende aqui, contudo, encorajar o abandono das atividades pensantes corriqueiras. É sugerido que haja um pouco mais de dedicação ao direcionar o foco das preocupações para a análise dos problemas que fazem substancial número de pessoas terem uma miserável qualidade de vida. E, para tanto, é devido ultrapassar os infrutíferos 60 segundos da atenção dirigida a tais questões, ampliando o tempo e a capacidade de se pensar criticamente. É preciso ir além das notícias e formar conceitos próprios cujo incômodo decorrente é capaz de estimular a autocobrança e, em maior escala, a cobrança sobre o estado com o passar do tempo.
Ah! O tempo. Tão bem estudado quão pobremente aproveitado. Porquanto, quem sabe se alguns minutos reflexivos o levem a mudar de postura a respeito dos acontecimentos globais? Não demore, o tempo urge.
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*Armando Correa de Siqueira Neto é psicólogo (CRP 06/69637), diretor da Self Consultoria em Gestão de Pessoas, palestrante, professor e mestre em Liderança pela Unisa Business School. Coautor dos livros Gigantes da Motivação, Gigantes da Liderança e Educação 2006. E-mail: selfcursos@uol.com.br