Por
José Luiz Ames e Ivo José Triches[1]
Inicialmente é importante destacar que a melhor
compreensão deste texto dar-se-á se você ler o artigo anterior que publicamos
com o seguinte título: ação política e paixão erótica: a política pequena.
Obs. Você encontrará esse texto neste espaço ou
no blog: www.itecne.edu.br/ivo
1 – Retomando a essência do artigo anterior
As relações que ocorrem no âmbito da política
pequena são semelhantes às que ocorrem com aquele ator social que age a
partir da paixão erótica. Deixa-se dominar pelos seus instintos vegetativos.
Deseja o poder com a mesma intensidade que deseja obter o prazer a qualquer
custo como bem demonstramos no texto anterior.
Regra de ouro: o egoísmo é o axioma determinante da política
pequena ao passo que o altruísmo é axioma da alta política.
2 – Algumas razões que possibilitam a
superação da política pequena
A superação da estreita relação que há entre ação
política e a paixão erótica ocorre quando um político age a partir da alta
política.
O que é a alta política? A resposta desta questão
já está implícita na regra de ouro acima. Um político que age a partir dessa
perspectiva age pensando antes de tudo no bem da coletividade. Quando dizemos
que um político é estadista, estamos nos referindo a alguém que pensa, antes de
mais nada, no bem da sociedade.
Uma das coisas mais difíceis para um gestor
público é conciliar o interesse coletivo com o interesse individual. Aquele que
pretende agir a partir da perspectiva da alta política, na dúvida precisa tomar
partido em favor da coletividade.
Regra de diamante: na alta política a
construção do novo ocorre sem negar tudo o que os outros fizeram ou fazem.
Você que nos lê pode observar ao seu redor. O
quê? É muito comum, quando chegam os pleitos eleitorais, a oposição procurar
negar tudo o que já foi feito por parte daquele que está governando.
Dá a impressão de que
a situação é do eixo do mal e que aqueles que querem
assumir o poder são perfeitos. Ledo engano. Cometerão erros e acertos como os
que já estão governando. Isso porque a imperfeição é condição humana. Muitos só
sabem jogar pedras. Quando se tornam vitrine, cometerão erros ainda maiores.
Notoriamente que nossa intenção aqui não é generalizar.
Regra de ouro: o criador nos fez diferentes para que juntos
pudéssemos chegar mais próximos da perfeição.
Nós, de fato, podemos fazer algo ainda melhor do
que já foi feito, mas para isso se desejarmos agir a partir da perspectiva da
alta política necessitaremos ter a ética perto de nós. Esse é assunto a seguir.
3 – A ética como elemento constitutivo da alta política.
Refletir sobre o tema das relações entre ética e
política não apenas é desafiador teoricamente, como urgente para a prática
política no contexto atual. Um bom começo talvez possa ser perguntar-nos sobre
aquilo que transforma uma ação qualquer em ação política. Podemos chamar de ação
política a que cria o social. Quer dizer, é política a ação que assume
como seu o ponto de vista da criação; que pretende moldar ou criar o universo
que afeta não sua vida subjetiva, mas o da coletividade.
Há política quando nos fazemos sujeitos de uma
realidade; isto é, quando não a tomamos por dada, ou por independente da ação
humana, mas a concebemos como resultando dessa ação – e, melhor ainda, nos
propomos a agir, moldando o mundo. Quando se define a ação como política, não
tem mais sentido falar do lugar do governante ou de quem o contesta a fim de
lhe ocupar a posição. O que importa é, muito antes, uma atitude criativa de
quem se torna sujeito de sua vida, e não mais o lugar: a postura, e não a
posição, eis o que conta.
Como exercer a ação política com ética? A primeira e fundamental
maneira é através do exercício das funções públicas em conformidade com a lei.
E quando uma lei é justa? Quando ela é boa para todos. Essa resposta nos foi
dada por Condorcet, por ocasião dos acontecimentos da Revolução Francesa (1743
- 1794).
A lei é a medida externa, visível, pela qual os
atos são medidos. Agir de modo ético na vida pública é cumprir a lei. No
entanto, a eficácia da lei fica comprometida por alguns fatores, dentre os
quais destacamos três. Primeiro: a mentalidade de que o
importante não é cumprir a lei, e sim evitar ser flagrado na infração. Por
exemplo, enriquecer por meio do tráfico de influência, sonegar impostos,
arrecadar verbas através da coação e expectativa de ganhos (ilegais) futuros:
vê-se problema nisso apenas na possibilidade de ser descoberto e não na prática
enquanto tal. Segundo: a certeza da impunidade, seja pelo
uso de artifícios jurídicos, seja por acordos de quadrilha, como se desenha
costumeiramente nos casos de corrupção. Terceiro: manobras e
pressões em benefício próprio. Vê-se que quem partilha dos privilégios do
poder pode fazer pressão para desviar a atenção de um problema, retardar ou até
anular uma ação investigativa que vise apurar os fatos de maneira
incontrovertível.
Onde estão as principais falhas
(responsabilidades) dos governantes? Apenas de forma indicativa, vamos referir
duas que parecem fundamentais.
Primeira: na convicção de que existiriam quadros partidários
moldados por princípios éticos tão profundos que os “blindariam” contra toda
possibilidade de corrupção. Alguns partidos cultivam a imagem de “partido da
ética na política”. Em geral, a imprudência de pensar que existem quadros
político-partidários imunes às tentações do dinheiro fácil está na origem da
corrupção.
Regra de ouro: quanto mais imune alguém se considera tanto mais
exposto ao risco ele se torna.
Segunda: na deliberada manutenção das estruturas de corrupção
construídas ao longo do tempo em nosso país. Quais estruturas? Destacamos
quatro que nos parecem mais perniciosas.
Primeira: a estrutura de cargos de
livre provimento do poder executivo. Em todas as esferas da administração pública, os
governantes estão autorizados a preencher um número considerável de cargos obedecendo
unicamente critérios de conveniência política.
É ali que, em geral, são acomodados os candidatos
derrotados nas eleições, os militantes mais dedicados, os parentes mais
próximos, etc., numa verdadeira partidarização das agências do Estado. Tudo funciona
como moeda de troca para, na melhor das hipóteses, angariar apoios a fim de
alcançar maioria na esfera legislativa. Em muitos casos, porém, é o caminho
pelo qual se instalam as estruturas de fraude e corrupção.
A solução desse tipo de problema não requer,
necessariamente, uma “privatização” das instituições públicas desses
subsistemas — que podem envolver saúde, transportes, educação, canais de
televisão pública, etc. —, mas pode passar pelo estabelecimento de um sistema
gerencial de gestão, bem como por um controle público desses setores por parte
dos órgãos de fiscalização.
Requer, porém, uma redução drástica no número de
tais cargos para algo em torno de 5% em relação ao existente. A
estrutura de cargos do Estado deve ser deixada aos cuidados de funcionários de
carreira escolhidos por mérito, ou seja, teríamos a meritocracia como norte da
gestão pública.
Segunda: as emendas individuais ao Orçamento. O expediente é utilizado
sob o pretexto de atender as necessidades das comunidades às quais o
parlamentar está vinculado. Na prática, porém, é um instrumento que alimenta o
clientelismo político. Por um lado, o parlamentar utiliza os recursos públicos
para obter vantagens pessoais, ainda que, no melhor dos casos, isso signifique
apenas o voto dos eleitores.
Por outro
lado, o governante se serve do expediente como moeda de troca, na base da
máxima “é dando que se recebe”: troca apoios no parlamento por liberação de
recursos para as emendas dos parlamentares. Extinguindo-se esse expediente,
impede-se a ação corruptora dos governantes e o clientelismo dos parlamentares.
O Orçamento deve ser do município, do estado ou da união, e não deste ou
daquele parlamentar. Agir em conformidade com essa ideia é agir a partir da
alta política.
Terceira: a estrutura partidária. Os representantes são
eleitos dentro de partidos e a partir de um programa de ação. Podem, porém,
trocar livremente de legenda e ignorar o programa de ação proposto sem que lhes
acarrete qualquer punição. Essa sistemática tem servido para práticas
descaradas de corrupção: o poder executivo algumas
vezes compra (por vezes literalmente!) a maioria
parlamentar na dimensão que lhe convém. Os recursos do tesouro financiam as
trocas de partido e os votos aos projetos do executivo.
Para estancar esta fonte de corrupção, impõe-se
uma reforma que obrigue a fidelidade partidária que puna com perda do mandato a
troca; que institua o financiamento público das campanhas proibindo qualquer
doação privada de pessoas e empresas; e que crie uma cláusula de barreira pela
qual só podem ter representação legislativa partidos com determinado porcentual
de votos.
Quarta: os órgãos de fiscalização. Os Tribunais de Contas, encarregados
de acompanhar e fiscalizar as contas da Administração Pública tornam-se, muitas
vezes, suspeitos devido à forma como são designados seus membros e é mantida
sua estrutura. Escolhidos pelo chefe do poder executivo, sua manutenção depende
diretamente da ação do governante. Poderíamos acrescentar a isso as Comissões
Parlamentares de Inquérito. Levantamento publicado pela revista Veja (ano 45,
n.19 p.70) mostra que os deputados criaram 29 CPIs no período compreendido do
segundo mandato de FHC e o primeiro de Lula com um total de 969 indiciados. No
entanto, nada aconteceu a nenhum deles, reforçando a sensação de impunidade de
que falamos acima.
A ética dos princípios (a que orienta nossas
ações cotidianas) nos acostumou à ideia de ver o mal unicamente nas ações
individuais. Ainda que, a princípio, seja verdade que é sempre um sujeito que
age (e não uma instituição ou estrutura social), este modo de pensar nos faz
acreditar em soluções falsas.
Sempre que
surgem denúncias de corrupção nos quadros políticos institucionais, a solução
que todos esperam é de que esta pessoa, quando ocupa algum cargo público, deve
ser substituída por outra e punida na sua falha. Ainda que isso seja
necessário, é um equívoco pensar que resolve o problema.
Onde está o equívoco dessa solução? Em não
perceber que a corruptibilidade humana não oferece segurança alguma de vitória
sobre o mal com a simples substituição das pessoas. Falta articular a punição
dos culpados à mudança nas estruturas facilitadoras da corrupção, como aquelas
que apontamos acima.
Isso, evidentemente, não equivale a dizer que a
correção ética individual é indiferente. Pelo contrário, a formação ética
sólida é imprescindível. O que ressaltamos é que unicamente a consciência
ética individual não garante uma vida pública assegurada contra a corrupção.
Regra de diamante: O que protege a vida
pública são as instituições e os mecanismos de controle das ações dos indivíduos.
Portanto, é preciso que existam regras claras e
objetivas que impeçam os indivíduos a agir segundo seu arbítrio subjetivo, ou
segundo aquilo que lhes aconselha seu convencimento ético interior, tão
somente. A integridade das instituições públicas não é assegurada pela presença
de pessoas eticamente íntegras e sim por mecanismos que as protejam do assalto
dos indivíduos.
Evidentemente que existem outras razões que
possibilitam a superação da relação entre ação política e paixão erótica, mas
essas você poderá acrescentar a partir de sua reflexão.
Nossa reta intenção é escrevermos para que tais
escritos façam bem a quem os ler. Esperamos que tenha sido esse o caso.
Ivo José Triches é diretor das Faculdades Itecne de Cascavel e Professor
Titular do Centro de Filosofia Clínica de Cascavel. E-mail: ivo@itecne.com.br blog: www.itecne.edu.br/ivo
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