A vida é cheia de
reações. Há momentos que nos fazem sentir e outros que nos fazem pensar; ora
somos extrovertidos, ora introvertidos; vezes agimos para fora, vezes agimos
para dentro. Há momentos em que precisamos ser ativos, outros em que precisamos
ser absolutamente passivos. Porém, na maior parte do tempo, somos
simultaneamente um e outro, ativos e passivos, como numa sala de aula, como num
diálogo por exemplo, no trabalho, enfim, na vida... Imagino a vida como um
grande novelo de linha que se desenrola pouco a pouco nas mãos da vovozinha que
incansavelmente faz e refaz suas casas no pano de linho. Ao final, meio que
tomada de ímpeto, a vovozinha se depara com uma belíssima imagem, antes não
vista, mas imaginada em sua memória. Só que, do início ao fim, o novelo guarda
múltiplas experiências até concretizar a tão sonhada imagem. O novelo se desfia
para se fiar na existência.
A existência nos prega
muitas peças. Umas de estranhamento, outras de entranhamento. O estranhar uma
realidade é inquietar-se com ela. Estranhar uma viagem que nos levará para um
lugar desconhecido. Estranhar uma escola nova. Estranhar um novo membro da
família que chega de imediato. Estranhar uma mudança de domicílio. Estranhar
está muito ligado ao “páthos” em Aristóteles, uma espécie de
afecção da alma, tem a ver com os sentimentos que nos provocam uma determinada
experiência de vida. Ao entrarmos em contato com algo novo, com um fato
inusitado, temos a impressão de que alguma coisa estranha mexe conosco. Esta
coisa estranha é a reação da nossa mais fina natureza.
O estranhamento está
muito presente no exercício do filosofar, tanto em Aristóteles quanto em
Platão. “A admiração, o estranhamento é o modo de ver daquele para quem
o filosofar é um modo de viver. Os gregos denominaram thaumátzein esta atitude
originante do filosofar”(Cf. Aristóteles, Metafísica A,2,17-19. Platão:
Teeteto, 155d). Realmente, a gente só pergunta porque estranha!
Se somos acometidos
constantemente pela experiência do estranhar, uma vez que alguma mudança está
ocorrendo, o que dizer então da experiência do entranhar. Entranhar está para
Sócrates como Sócrates está para a Filosofia. Esta palavra me faz lembrar
Fenarete, a mãe de Sócrates, parteira ou tratadeira das mulheres gestantes,
prontas para dar a luz. Imagino Fenarete saindo pelas ruelas da Grécia antiga,
de casa em casa, cuidando de muitas mulheres que engravidavam e ansiosas
esperavam seus filhos. Sócrates, certamente muito pequeno a seguia por essas
ruas estreitas da Grécia a fim de acompanhar zelosamente o trabalho da mãe.
Imaginem o pequenino menino filósofo ali, à sombra da mãe, vendo o ofício das
mãos afinadas com a enfermagem. Sem saber ao certo, Sócrates já estava
antecipando os traços visíveis de sua mais nobre filosofia, a arte de fazer
parto de almas e não de corpos. Com a mãe, parteira de corpos, viu maravilhado,
entranhado, a maneira com que ela habilmente ajudava suas pacientes a dar a
vida.
Talvez, a partir dessa
experiência de Sócrates com sua mãe, o filósofo tenha adquirido os dois
principais métodos da sua filosofia, o “elénkos” e a “maiêutica”. O primeiro é
pura refutação, o segundo é o nascimento da verdade pelo diálogo.
Principalmente, na linha do segundo é que se encontra o entranhamento da
Filosofia. Argumento demasiadamente os elementos da justiça que tenho a
possibilidade de me tornar justo. Argumento frequentemente as categorias da
bondade que me torno bom. Falo por demais sobre Deus que me torno um religioso
ou cristão ao falar muito de Cristo. Falo tanto de Filosofia que, com isso, passo
a me tornar um filósofo. Entende-se assim a maneira de se entranhar do filósofo
Sócrates, de modo que seus pensamentos chegam ao coração, promovendo nos seus
interlocutores uma forma de impregnar suas convicções. Os seus ouvintes ficavam
tão imbuídos com suas ideias que, de pronto, assumiam suas convicções devido ao
poder de suas argumentações. Entranhar é embrenhar-se disso. Estar
profundamente penetrado ou impregnado de sua ideias e convicções.
Estou aqui a viajar um
pouco em minhas ideias filosóficas para atribuir a Sócrates, talvez, as duas
maneiras de se sentir afetado por suas ideias. Quando Sócrates interrompia um
juiz e o perguntava sobre justiça é porque aquilo o estava estranhando,
perturbando, de alguma maneira. Como é que um homem que se diz juiz não sabe
nada de justiça!? Por outra, o entranhamento acontecia quando, o tal indivíduo
se convencia da sua ignorância e aceitava aprender para encontrar, de fato, a
verdade. Perguntar-se é estranhar. Convencer-se em buscar a verdade é o
entranhar. Estar convicto da verdade é, sim, ao meu ver, uma espécie de
entranhamento.
Acho que nos
entranhamos mais do que nos estranhamos. Devia ser o contrário. Somos mais
políticos do que filósofos na prática. Políticos gostam mais de acordos,
filósofos não. Percebo que o filósofo se lança mais a favor do estranhar.
Parece próprio do pensamento estranhar, independentemente das certezas que
advenham dele. O pensar é autônomo e não se prende ao entranhar, à verdade. É
melhor, ao meu ver, desentranhar do que entranhar para o filósofo. Porém, em se
tratando de pessoas comuns, as duas formas de atitudes frente à vida são muito
pertinentes e merecem toda a nossa atenção. Para alguns, as
certezas(entranhamento) trazem paz e tranquilidade à alma. Para outros, as
dúvidas(estranhamento) nos lançam em direção à inquietação, o que também
alimenta uma alma curiosa, sábia.
Todavia, estranhamento
e entranhamento, como em Sócrates, parecem admiravelmente se completarem de
modo estranho a favor do filosofar...
Prof. Jackislandy Meira
de M. Silva
Licenciado em
Filosofia pela UERN e Especialista em Metafísica pela UFRN
www.twitter.com/filoflorania
Nenhum comentário:
Postar um comentário