Medicina Filosófica
Prof.
Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Não é incomum ouvirmos queixas do tipo: “Isso é tão
caro!”. Sobretudo, quando vamos ao mercado, às lojas ou quando
planejamos alguma viagem. Já disse por aqui, muitas vezes, que quase
tudo nesse país esbarra em dinheiro, principalmente para aqueles que
mais carecem dele; trabalhadores assalariados e os menos favorecidos
socialmente.
A bem da verdade, é que volta e meia somos flagrados,
até involuntariamente, a certos sobressaltos de admiração pelo
alto custo das coisas. Porém, a muitos que andam tão indignados com
a inflação, é bom que se faça a seguinte reflexão: Se você
tivesse que deixar oitocentos reais ou mais do seu orçamento mensal
numa farmácia para manter-se vivo? Certamente, a situação seria
outra e as queixas não se repetiriam tanto. Pensando bem, antes de
levantar qualquer indignação nesse sentido, parece ser mais
razoável agradecer. O ato de agradecer também nos deixa mais
resistentes, muito embora não concorde com toda esta exploração
financeira do mercado.
O que pretendemos com essa simples demonstração de
humanidade? De imediato, tirarmos nosso foco existencial da economia,
do capitalismo e da baboseira de que sem dinheiro não somos nada.
Não somos nada sem saúde. Este é o ponto de nosso interesse aqui.
Com o país em situação econômica estável, pelo menos até agora,
a indústria farmacêutica tende a acelerar-se cada vez mais,
enriquecendo, em função da prática de uma medicina paliativa e não
preventiva, tampouco educativa e filosófica. Contudo, tal prática
vem mudando com a orientação médica de caminhadas, exercícios
físicos, regimes, dietas, práticas de higiene e o cuidado com o
corpo.
A medicina antiga, dos tempos de Hipócrates, era
extremamente preventiva, ética e, por isso, filosófica. Estamos
falando da segunda metade do séc. V a.C. e das primeiras décadas do
séc. IV a.C., o mundo era outro, a cultura também, os valores eram
diferentes, mas o corpo era o mesmo. Afinal, a medicina sempre operou
sobre ele. Hipócrates era contemporâneo de Sócrates, Platão e
Aristóteles que o consideraram como o grande médico.
Da mesma linha ascendente a que se remetiam os médicos
no passado, Hipócrates herdou um ofício divinizado de Esculápio, o
primeiro a ser chamado de “médico” ou “salvador” por ter
aprendido do centauro Quíron a arte de curar os males. Com
Hipócrates, a medicina alcança o status de ciência e passa a
compreender as doenças como causas naturais do homem. Assim como
Sócrates na Filosofia, Hipócrates com a medicina desenvolve toda
uma observação racional acerca do ser humano, seu corpo e alma. O
“conhece-te a si mesmo” e o “meden agan”, isto é, o nada em
excesso, vão nortear os princípios sábios da medicina hipocrática.
Curiosamente, os regimes, dietas, reeducação
alimentar, passeios, atividades físicas, higiene e tudo a que nos
submetemos hoje para preservarmos uma boa saúde era observado com
precisão e justa “medida” por Hipócrates no IV livro das
Epidemias: “os
exercícios (ponoi), os alimentos (sitia), as bebidas (pota), os
sonos (hupnoi), as relações sexuais (aphrodisia) – todas sendo
coisas que devem ser 'medidas'. A reflexão dietética desenvolveu
essa enumeração. Dentre os exercícios distingue-se aqueles
que são naturais (andar, passear), e aqueles que são violentos (a
corrida, a luta); fixa-se quais são os que convém praticar, e com
que intensidade, em função da hora do dia, do momento do ano, da
idade do sujeito e da sua alimentação. Aos exercícios são
relacionados os banhos, mais ou menos quentes, e que também dependem
da estação, da idade, das atividades e das refeições que foram
feitas ou que ainda se vai fazer. O regime alimentar – comida e
bebida – deve levar em conta a natureza e a quantidade do que se
absorve, o estado geral do corpo, o clima, as atividades que se
exercem...”(In FOUCAULT, M. História
da Sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1998, p. 93).
Interessante notar como a medicina, na aurora da
Filosofia, exercia um papel de formidável educação das pessoas, na
medida em que ela levava a pensar a conduta humana; a maneira pela
qual se conduzia a própria existência, despertando um comportamento
em função de uma natureza, de modo que o homem compreendesse sua
“physiologia”, a
fim de saber preservá-la e conformar-se a ela. A dietética
hipocrática se constituía, para os antigos, uma arte de viver.
As práticas de cuidado com o corpo de Hipócrates eram
tão presentes no modo de vida, no cotidiano das pessoas da
antiguidade que influenciaram fortemente a Filosofia em seu
nascimento, tanto é que Platão faz ressalvas, em seus diálogos,
aos excessivos exercícios e dietas que visam apenas à longevidade,
e não a uma vida útil e feliz. Relatos de Xenofonte, nas
Memoráveis, traz
Sócrates orientando seus discípulos para serem “capazes
de se bastarem a si próprios”(IV, 7); “Que
cada um se observe a si próprio e anote que comida, que bebida, que
exercício lhe convêm e de que maneira usá-los a fim de conservar a
mais perfeita saúde”(idem). Portanto, o
mestre Sócrates ensina a ter autonomia para com sua saúde: “Se
vos observardes desse modo, dificilmente encontrareis um médico que
possa discernir melhor do que vós próprios o que é favorável à
vossa saúde”(idem).
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