quinta-feira, 26 de julho de 2012


Pensar pelo estômago

 “O 'espírito' se assemelha mais que tudo a um estômago”(Nietzsche, Além do bem e do mal, af. 230).


Nietzsche é visceral. É visceral na política, na educação, na arte, na ciência, na religião e, sobretudo, na filosofia. Essa impressão marcante de Nietzsche me veio ligeiramente agora porque sinto que a filosofia não pode abrir mão de um pensar tão significativo quanto este presente no Prefácio da Genealogia da Moral: “É verdade que, para praticar a leitura de uma 'arte', é necessário, antes de mais nada, possuir uma faculdade hoje muito esquecida (por isso há de passar muito tempo antes de meus escritos serem 'legíveis'), uma faculdade que exige qualidades bovinas e não as de um homem moderno, ou seja, a ruminação”(NIETZSCHE, A genealogia da moral. 2ª ed. São Paulo: Escala, 2007. p. 20). Daí ser imprescindível ao filósofo, ou ao homem simplesmente, que as qualidades bovinas devam nos guiar pelas veredas da vida do pensamento. Ora, atrelado às faculdades da imaginação e da memória, está a do ruminar. Que genialidade do filósofo, digo do poeta!
Observar o pasto. Se o pasto é verdejante ou não. Escolher o que se vai comer. Depois, ruminar, ruminar bastante como um boi ou uma vaca. Em seguida, digerir o alimento, o pasto, para não dar uma indigestão. Escolher bem o que se vai comer facilita a digestão e a consequente produção de conhecimento. Essa passagem da filosofia de Nietzsche, de certo modo, é uma reação à cultura do entretenimento que pouco pensa e reflete no que faz, pouco se esquece e muito se ressente.
Com que mais nos aborrecemos? Com uma dor de cabeça ou uma dor de estômago? Independentemente da resposta, “o homem que pune a si mesmo é o mesmo que acredita na dor como forma de engrandecimento e elevação”(MOSÉ, Viviane. O homem que sabe. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 46). Dor de cabeça aqui é a dor da consciência por um malfeito praticado. Dor de estômago é a angústia, advinda dos conflitos internos ou até mesmo dos ressentimentos. Na linha da consciência está tudo que julga, escamoteia, racionaliza, limita, controla, conhece e que impede a força instintiva do ser, o poder ser. Na linha do estômago está tudo aquilo que do humano é instintivo, por exemplo, a natureza, a arte, a criação, a ousadia, o improviso, as paixões, enfim. Essas duas linhas são paralelas e a reação de ambas pode potencializá-las, é preciso então reconhecê-las e entender por que elas atravessam a história do pensamento e suas transformações.
A referência ao espírito como um estômago aparece no Zaratustra ressaltando a deterioração da vida produzida pela consciência: “Um estômago estragado, com efeito, é seu espírito: esse lhes aconselha a morte! Porque, na verdade, meus irmãos, o espírito é um estômago! A vida é uma nascente de prazer; mas, para aqueles em quem fala o estômago estragado, o pai das aflições, todas as fontes estão envenenadas”.
O interessante é que Nietzsche se apropria da imagem do estômago para nos mostrar o quanto é importante a função da consciência: “A consciência digere, na medida em que assimila ou rejeita, selecionando, simplificando, reduzindo, processando”(idem, p. 47). Uma linha explica a outra. A consciência se reflete no estômago e vice-versa. Por que não pensar pelo estômago? Pensar é também digerir com o aparelho da memória e do esquecimento. Segundo Nietzsche, a melhor forma de digestão é o esquecimento.
Engraçado... Mas o papel da consciência nos remete à cultura judaico-cristã que, distorcida e tendenciosamente, dimensiona as ações humanas ao aspecto padrão da mensagem de Cristo, dos seus atos e suas palavras por meio do medo e de suas superstições; uma cultura extremamente massificadora e autoritária das igrejas, segundo a qual constituem modelos de comportamento, de dominação e servidão. Reconhecer isso cria o homem ressentido.
Em contrapartida, o caráter filosófico do estômago, avesso à cultura de rebanho apontada acima, nos insere na perspectiva do novo, do reativo, do devir. Temos que reagir ao que aprendemos a negar por meio de uma cultura da morte e da inércia. É preciso reaprender, senão desaprender a viver. É preciso afirmar a natureza, a própria vida, os afetos, as paixões, as pulsões, o desconhecido, a pluralidade, a mudança e o tempo.
Por falar em tempo, o deus grego Cronos casou com sua irmã Reia e teve seis filhos: Zeus, Hades, Poseidon, Héstia, Deméter e Hera. Logo que nasciam, os filhos eram engolidos literalmente por Cronos. Só não conseguiu engolir Zeus porque sua mãe enganou Cronos ao colocar uma pedra enrolada em panos. Ao invés de comer Zeus, Cronos comeu uma pedra. Com essa história, estive pensando na indigestão que a pedra causou a Cronos, não pela pedra, claro, mas pelo que iria se suceder daí. Zeus se vingaria de Cronos e reinaria absoluto.

Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Especialista em Metafísica

Nenhum comentário:

Postar um comentário