Pensar pelo estômago
“O 'espírito' se
assemelha mais que tudo a um estômago”(Nietzsche, Além do bem e do mal, af.
230).
Nietzsche é visceral. É visceral
na política, na educação, na arte, na ciência, na religião e, sobretudo, na
filosofia. Essa impressão marcante de Nietzsche me veio ligeiramente agora
porque sinto que a filosofia não pode abrir mão de um pensar tão significativo
quanto este presente no Prefácio da Genealogia da Moral: “É verdade que,
para praticar a leitura de uma 'arte', é necessário, antes de mais nada,
possuir uma faculdade hoje muito esquecida (por isso há de passar muito tempo
antes de meus escritos serem 'legíveis'), uma faculdade que exige qualidades
bovinas e não as de um homem moderno, ou seja, a ruminação”(NIETZSCHE, A
genealogia da moral. 2ª ed. São Paulo: Escala, 2007. p. 20). Daí ser
imprescindível ao filósofo, ou ao homem simplesmente, que as qualidades bovinas
devam nos guiar pelas veredas da vida do pensamento. Ora, atrelado às
faculdades da imaginação e da memória, está a do ruminar. Que genialidade do
filósofo, digo do poeta!
Observar o pasto. Se o pasto é
verdejante ou não. Escolher o que se vai comer. Depois, ruminar, ruminar
bastante como um boi ou uma vaca. Em seguida, digerir o alimento, o pasto, para
não dar uma indigestão. Escolher bem o que se vai comer facilita a digestão e a
consequente produção de conhecimento. Essa passagem da filosofia de Nietzsche,
de certo modo, é uma reação à cultura do entretenimento que pouco pensa e
reflete no que faz, pouco se esquece e muito se ressente.
Com que mais nos aborrecemos?
Com uma dor de cabeça ou uma dor de estômago? Independentemente da resposta, “o
homem que pune a si mesmo é o mesmo que acredita na dor como forma de
engrandecimento e elevação”(MOSÉ, Viviane. O homem que sabe. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 46). Dor de cabeça aqui é a dor
da consciência por um malfeito praticado. Dor de estômago é a angústia, advinda
dos conflitos internos ou até mesmo dos ressentimentos. Na linha da consciência
está tudo que julga, escamoteia, racionaliza, limita, controla, conhece e que
impede a força instintiva do ser, o poder ser. Na linha do estômago está tudo aquilo
que do humano é instintivo, por exemplo, a natureza, a arte, a criação, a
ousadia, o improviso, as paixões, enfim. Essas duas linhas são paralelas e a
reação de ambas pode potencializá-las, é preciso então reconhecê-las e entender
por que elas atravessam a história do pensamento e suas transformações.
A referência ao espírito como um
estômago aparece no Zaratustra ressaltando a deterioração da vida produzida
pela consciência: “Um estômago estragado, com efeito, é seu espírito: esse
lhes aconselha a morte! Porque, na verdade, meus irmãos, o espírito é um
estômago! A vida é uma nascente de prazer; mas, para aqueles em quem fala o
estômago estragado, o pai das aflições, todas as fontes estão envenenadas”.
O interessante é que Nietzsche
se apropria da imagem do estômago para nos mostrar o quanto é importante a
função da consciência: “A consciência digere, na medida em que assimila ou
rejeita, selecionando, simplificando, reduzindo, processando”(idem, p. 47). Uma
linha explica a outra. A consciência se reflete no estômago e vice-versa. Por
que não pensar pelo estômago? Pensar é também digerir com o aparelho da memória
e do esquecimento. Segundo Nietzsche, a melhor forma de digestão é o
esquecimento.
Engraçado... Mas o papel da
consciência nos remete à cultura judaico-cristã que, distorcida e
tendenciosamente, dimensiona as ações humanas ao aspecto padrão da mensagem de
Cristo, dos seus atos e suas palavras por meio do medo e de suas superstições;
uma cultura extremamente massificadora e autoritária das igrejas, segundo a
qual constituem modelos de comportamento, de dominação e servidão. Reconhecer
isso cria o homem ressentido.
Em contrapartida, o caráter
filosófico do estômago, avesso à cultura de rebanho apontada acima, nos insere
na perspectiva do novo, do reativo, do devir. Temos que reagir ao que
aprendemos a negar por meio de uma cultura da morte e da inércia. É preciso
reaprender, senão desaprender a viver. É preciso afirmar a natureza, a própria
vida, os afetos, as paixões, as pulsões, o desconhecido, a pluralidade, a
mudança e o tempo.
Por falar em tempo, o deus grego
Cronos casou com sua irmã Reia e teve seis filhos: Zeus, Hades, Poseidon,
Héstia, Deméter e Hera. Logo que nasciam, os filhos eram engolidos literalmente
por Cronos. Só não conseguiu engolir Zeus porque sua mãe enganou Cronos ao
colocar uma pedra enrolada em panos. Ao invés de comer Zeus, Cronos comeu uma
pedra. Com essa história, estive pensando na indigestão que a pedra causou a
Cronos, não pela pedra, claro, mas pelo que iria se suceder daí. Zeus se
vingaria de Cronos e reinaria absoluto.
Prof. Jackislandy Meira de
Medeiros Silva
Licenciado em Filosofia,
Bacharel em Teologia e Especialista em Metafísica
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